terça-feira, 1 de setembro de 2009

A indiferença nossa de cada dia - Otto Lara Resende

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta.
Um poeta é só isso: um certo modo de ver.
O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar... vê, não vendo.
Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia sem ver.
Parece fácil, mas não é. O que nos é familiar, já não desperta curiosidade.
O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta.
Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe.
De tanto ver, você não vê.
Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo porteiro.
Dava-lhe bom-dia e, às vezes, lhe passava um recado ou uma correspondência.
Um dia, o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara, sua voz, como se vestia? Não fazia a mínima idéia.
Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer.
Se um dia, no seu lugar estivesse uma girafa cumprindo o rito,
pode ser que ninguém desse por sua ausência.
O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem.
Mas, há sempre o que ver: gente, coisas, bichos.
E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que um adulto não vê,
pois tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê.
Há pai que nunca viu o próprio filho, marido que nunca viu a própria mulher.
Isso exige muito. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia.
É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

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